A ostensiva prática competitiva entre os Estados de uma mesma federação que buscam atrair empresas de outros territórios para o seu, oferecendo para isso uma série de benefícios e incentivos fiscais de ICMS, tais como isenções, diferimentos, reduções de alíquotas, de base de cálculo, dentre outros inaugurou mais um capítulo.
Explica-se. O Supremo Tribunal Federal julgou no mês de agosto (17/08) o tema sob repercussão geral n.º 490 (RE n.º 62.8075) no qual ficou consignado que “o estorno proporcional de crédito de ICMS efetuado pelo Estado de destino, em razão de crédito fiscal presumido concedido pelo Estado de origem sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), não viola o princípio constitucional da não cumulatividade”.
Embora o Ministro Relator Edson Fachin tenha proferido o seu voto no sentido de que a glosa de crédito de ICMS efetuada pelo Estado de destino afronta a ordem constitucional, ainda que se esteja diante das hipóteses de benefícios fiscais concedidos unilateralmente pelo Estado de origem, sem observância do art. 155, § 2º, XII, ‘g’, da Constituição da República, este foi vencido pelo Tribunal Pleno.
O Ministro Gilmar Mendes inaugurou a divergência sustentando que a questão constitucional mais relevante no caso seria a interpretação dada ao inciso I do parágrafo 2§ do artigo 155 da Constituição Federal, o qual prevê que o montante devido a título de ICMS poderá ser compensado com aquele cobrado nas operações anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.
Depreende-se do voto de divergência que os argumentos apontados pelo Ministro Gilmar Mendes fazem referência às outras jurisprudências da Corte, no sentido de que o montante a ser creditado pelo contribuinte deve ser aquele efetivamente suportado por ele; por conta disso, o estorno proporcional de créditos de ICMS em decorrência de crédito fiscal presumido concedido por outro Estado não ofenderia o princípio da não cumulatividade.
Apesar de o Ministro Gilmar concordar com o Ministro Relator Edson Fachin quanto ao fato de competir somente ao Poder Judiciário o controle repressivo de constitucionalidade, ele entende que no caso em específico o Estado do Rio Grande do Sul, ao glosar o crédito tributário, não estaria realizando um controle de constitucionalidade, mas zelando pela harmonia do pacto federativo.
O voto do Ministro Relator Edson Fachin, embora seja voto vencido, revela ser o mais acertado, uma vez que a Constituição Federal concede autonomia aos Estados e ao Distrito Federal para que estes prevejam as regras para a cobrança de ICMS nas operações interestaduais. Diante disso, não poderiam os Estados de destino, sob a alegação de que os incentivos fiscais foram concedidos à revelia do CONFAZ, valer-se de mecanismos inconstitucionais para impedir a utilização destes benefícios.
Importante destacar os trechos do voto vencido no qual o Ministro Fachin disserta sobre a necessidade de se oferecer segurança jurídica aos contribuintes que são a parte mais frágil no tocante à competição fiscal predatória do ICMS:
[…] Quanto ao primeiro fundamento, é de todo ilógico, além de inconstitucional, o esforço de remediar ou mitigar os efeitos desfavoráveis aos cofres públicos resultantes da competição fiscal predatória vigente no campo do ICMS pela via do contribuinte. Este é parte desarticulada e mais frágil no concerto federativo com referência às operações interestaduais de circulação de mercadorias. […] Afronta a noção de segurança jurídica a frustração de expetativa legítima do contribuinte de valer-se dos créditos adquiridos na operação prévia, sem embaraço ou glosa por parte do Estado de destino. […] contribuintes que não podem ser colocados na ‘linha de tiro’ dos Entes federativos envoltos num conflito interminável de competências tributárias” […].
Deveras, o ministro Fachin revela acertado entendimento, uma vez que a decisão em comento vai de encontro ao fundamento constitucional da segurança jurídica. Em verdade, com o atual entendimento de que é válida a glosa de créditos de ICMS referente a benefícios fiscais concedidos sem a observância do CONFAZ, serão vários os empresários que terão suas provisões drasticamente alteradas.
No tocante ao conceito de segurança jurídica na fruição dos incentivo fiscais, Lucas Bevilacqua (2013, p. 232) aduz que é “Importante registrar desde já que um Estado de Direito é muito mais do que um Estado sob a égide da lei; é um Estado firmado no princípio da segurança jurídica, e seu consectário da proteção da confiança, no qual deve vigorar o respeito ao ato jurídico perfeito, a coisa julgada e ao direito adquirido”
Nesse ponto, faz-se imperioso esclarecer que a referida decisão teve, ao menos, seus efeitos modulados na sistemática ex nunc, ou seja, o aludido entendimento não retroagirá para desfazer cenários pretéritos. Contudo, os processos que estavam suspensos, com base no artigo 1.035, parágrafo 5º, do Código de Processo Civil, e todos os autos de infração ainda na esfera administrativa, ganharão agora outro contorno e serão, de fato, exigidos.
Nessa esteira lógica, a modulação em tela contempla a Lei Complementar 160/2017 e o Convênio ICMS 190/2017, os quais dissertam sobre a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes dos incentivos concedidos sem o aval do CONFAZ. De fato, parece que os atos praticados, com fulcro na Lei Complementar 160/2017, não serão desconstituídos.
Em verdade, segundo o Ministro Gilmar Mendes, voto vencedor, “qualquer decisão a ser adotada por este Tribunal deve respeitar o que eventualmente fora decidido pelos Estados com base na Lei Complementar 160/2017” que permite aos Estados e ao Distrito Federal deliberar sobre a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais instituídos em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal. Significa dizer que, apesar do Ministro asseverar que:
[…] não viola o princípio da não cumulatividade o estorno proporcional de crédito de ICMS, quando, na operação precedente realizada em outro estado, tenha o contribuinte obtido benefício do crédito presumido, deve ser respeitada eventual legislação estadual que tenha admitido expressamente o referido crédito no Estado de destino.
Nesse sentido, fica em aberto uma questão. Vejamos, embora o STF tenha definido pela constitucionalidade da glosa de crédito de ICMS decorrente de benefício fiscal concedido à revelia do CONFAZ, o fato de o referido Ministro Gilmar Mendes ter dito que ainda permanece válida a Lei Complementar 160/2017, revela que a celeuma sobre a guerra fiscal ainda está distante de acabar. Assim, será necessário acompanhar o que cada Estado decidirá, se cumprir a aludida lei complementar ou ceder ao entendimento da decisão do Supremo Tribunal Federal.