Por Juliane Franco de Sousa Almeida, OAB/GO nº 20.302
Advogado no escritório Jacó Coelho Advogados Associados na área de direito médico e securitário.
No dia 6 de junho de 2019 foi publicado, no Diário Oficial da União, o texto da Lei 13.840/2019, sancionada pelo Governo Federal, permitindo a internação compulsória de dependentes químicos, ou seja, sem a necessidade de autorização judicial.
A nova lei vem sendo bastante discutida, tendo em vista que trata de um assunto que gera grande repercussão social, vez que a dependência química é uma condição que historicamente sempre existiu e está intrinsecamente ligada às políticas públicas praticadas no combate e conscientização dos malefícios que acarretam o uso de entorpecentes.
De acordo com a mencionada lei, o requerimento para que o dependente seja internado, poderá ser feito administrativamente pela própria família ou responsável legal do mesmo, diretamente ao estabelecimento de internação, ou no centro de regulação, em se tratando do SUS (Sistema único de Saúde). Caso o dependente não tenha nenhum responsável legal, o pedido pode ser apresentado por servidor da área da saúde, assistência social ou de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD).
Outra inovação trazida pela Lei 13.840/2019 é a inclusão no SISNAD das comunidades terapêuticas acolhedoras, as quais são entidades privadas e, na maioria, de orientação religiosa, regulamentadas no Brasil pela Resolução-RDC nº 29/2011, de 30 de Junho de 2011, pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de entorpecentes.
A norma tratada no presente artigo estabelece ainda que a internação involuntária deverá ser feita em unidades de saúde e hospitais gerais, com laudo de um médico, no qual deverá constar a prescrição de internação pelo prazo máximo de 90 dias, período que é considerado pelos especialistas da área médica como sendo o recomendável à desintoxicação de dependentes químicos.
Há que se destacar que a responsabilidade do médico que emite o referido laudo é de extrema relevância, pois com base especificamente neste documento, é que a Lei permite a internação compulsória, devendo o profissional estar plenamente habilitado para formular o documento, bem como atentar de maneira segura ao fato de que o paciente necessita dessa medida como forma de tratamento.
O texto estabelece que os locais de internação devem servir como uma etapa transitória para a reintegração social e econômica do usuário de drogas; e mesmo que o paciente manifeste o desejo de aderir às comunidades, ou seja, que ele manifeste interesse por uma internação voluntária, uma avaliação médica prévia do dependente deve ser feita.
A edição dessa Lei com as especificidades descritas responde ao sério problema social que assola o país. O descontrole e a proporção que tem tomado o uso indiscriminado de entorpecentes podem ser percebidos, principalmente, nas grandes metrópoles, onde é possível presenciar aglomerados de pessoas dependentes químicas em locais públicos, tal como no emblemático caso da “cracolândia”, em São Paulo. A propósito, nesse local já foram feitas várias intervenções de internação compulsória pelo Governo Estadual garantidas através de medidas judiciais concedidas; contudo, essas medidas tiveram pouca ou nenhuma eficácia, visto que, ao término da internação, os usuários acabaram retornando ao local de onde foram resgatados.
É justamente essa condição de vulnerabilidade e degradação, que acaba por levar os dependentes químicos a comprometerem a sua capacidade civil, tratada pelos artigos 1º, 3º e 4º do Código Civil Brasileiro, que diz respeito a aptidão da pessoa em exercer os seus direitos de forma plena. Nesse sentido, torna válido o seguinte ensinamento de Arnold Wald:
Se todos os homens são capazes de direito, podendo ter direitos subjetivos e contrair obrigações, nem todos são aptos a praticar pessoalmente os atos da vida civil. Distinguimos, pois, a capacidade de direito, ou seja, a possibilidade de adquirir direitos e contrair obrigações por si ou por terceiros, da capacidade de fato, também chamada capacidade de exercício ou de negócio, em virtude da qual um indivíduo pode praticar pessoalmente os atos da vida civil, sem necessitar de assistência ou de representação (WALD, 2002, p. 137). [grifo nosso]
A pessoa, em certo estágio de dependência química, já não tem mais discernimento dos seus atos e pode ter situação relativamente incapaz, tal como se encontra disposto no Artigo 4º do Código Civil Brasileiro, inciso II, que diz: “Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (…) II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico;”. [grifo nosso]
Alguns especialistas entendem que tal medida é um instrumento de urgência capaz de atenuar esta gravíssima questão de saúde pública, salvando inúmeras vidas de dependentes químicos que se encontram em situação extremamente degradante e de vulnerabilidade nas ruas. Dissociados da sua capacidade de discernimento, os dependentes químicos perdem totalmente a noção dos riscos a que podem estar submetidos, seja fisicamente, mentalmente, emocionalmente ou patrimonialmente, acabando por atingir direta ou indiretamente seus familiares.
Certamente, por se tratar de uma nova legislação, deverão ocorrer eventuais discussões jurídicas acerca da intervenção do Estado que, por vezes, poderá ser considerada arbitrária por não respeitar a vontade do indivíduo em receber o tratamento adequado. Provavelmente tais discussões serão direcionadas às Varas de Fazenda Pública, como foi considerado pelo Enunciado I do Tribunal de Justiça de Santa Catarina-TJSC:
Os integrantes do Órgão Especial, reunidos em Sessão Ordinária em 2/3/2016, aprovaram o seguinte Enunciado:
Compete às Varas da Fazenda Pública processar e julgar a ação de internação compulsória de toxicômanos dirigida contra o Estado de Santa Catarina ou contra um de seus municípios, havendo ou não litisconsórcio passivo com o dependente químico, desde que não cumuladas com pedido de interdição, tutela ou curatela, porquanto, nestes casos, prevalece a discussão sobre a capacidade civil e o estado das pessoas, matérias de índole eminentemente civil, afetas, pois, ao Direito de Família. [grifo nosso] (TJ-SC, 2016)
Apesar das diversas discussões sobre o tema, não se pode ignorar o fato de que a referida legislação se consubstancia em inegável suporte à implementação das políticas de saúde pública. Seu intuito é garantir o mínimo de condições para que as pessoas que se encontram em evidente estado de vulnerabilidade em razão da dependência química, possam ser clinicamente tratadas, resgatando sua saúde física e psicológica, bem como sua dignidade como ser humano, por mais utópica ou salvacionista que possa parecer essa argumentação, quando confrontada com a falta de aparelhamento dos hospitais e instituições públicas que receberão estes pacientes.