Há quase 30 anos a autonomia do Banco Central do Brasil (BACEN) é assunto de discussão pelos pensadores, sejam eles economistas ou juristas, que tendem pela linha de raciocínio do liberalismo econômico. De um lado os que defendem a economia liberal, e por isso, a favor da autonomia e em contraponto ao liberalismo, há quem defenda a concentração de poder, a submissão ao chefe do executivo como sendo a solução mais benéfica.
Recentemente, muito se tem noticiado sobre a aprovação do projeto de lei que prevê a autonomia do Banco Central do Brasil pela Câmara dos Deputados, aprovação essa que se deu neste 10 de fevereiro.
Atualmente, o BACEN encontra-se vinculado ao Ministério da Economia. Entre os poderes atribuídos à pasta, estão os de livre demissão pelo Presidente da República.
Os dois principais projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional acerca do tema têm em sua essência a possibilidade de outorgar maior autonomia à autarquia federal. Por isso, objetivam às proposituras legislativas a autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira.
Dentre os motivos, o citado com coro, é a possibilidade de conferir à instituição financeira autonomias e garantias a ponto de não sofrer pressões político-partidárias, como ocorre atualmente.
Os projetos de legislação que ganham destaque são: o projeto de lei complementar PLP 19/2019, apresentado em 10 de novembro de 2020 e seu “irmão mais velho”, o projeto de lei complementar PLP 112/2019, apresentado em 17 de abril de 2020.
BREVE HISTÓRICO
A necessidade de uma instituição financeira do porte do Banco do Brasil já era muito sentida em meados de 1964, ano de criação da Casa da Moeda. Antes disso, há relatos históricos de que no ano de 1808, época em que o príncipe regente de Portugal, D. João, posteriormente D. João VI, desembarcou no Brasil, já se idealizava a criação de um banco com as diretrizes de banco central, e se falava na necessidade de um banco comercial.
O então príncipe regente, considerando tais necessidades, em 12 de outubro daquele mesmo ano (1808) criou o primeiro banco no país, o Banco do Brasil. Após a liquidação daquele que foi o primeiro, o Banco do Brasil de hoje foi fundado por lei em 1853, por iniciativa de José Joaquim Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí, que mais de uma vez foi seu presidente, pela fusão do Banco do Brasil, do Barão de Mauá e do Banco Comercial.
Após a criação do Banco do Brasil, e diante da necessidade de um banco central, não suprida por aquele, foi criado o Banco Central do Brasil, através da Lei n. 4.595/64, em dezembro de 1964. Por esse ato normativo derivativo, o banco foi criado e estruturado sendo-lhe conferido o status de autarquia federal integrante do Sistema Financeiro Nacional (SFN).
Como importantes fontes legais, pode-se destacar a Lei 4.728/65, que disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento, e a Lei 6.385/76, que dispõe sobre o mercado de valores imobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Já ao Sistema Financeiro Nacional (SFN), dada a sua importância, foi reservado capítulo inteiro (Capítulo V, Título VII), na Constituição da República, que se inicia a partir do artigo 192.
Publicada a Lei n. 4.595/64, o BACEN só iniciaria suas atividades em março de 1965, posto que o vacatio legis, disposto no artigo 65, estabeleceu que a Lei entraria em vigor 90 dias após sua publicação (31/12/1964).
Os projetos de lei complementar(es) que serão objeto de análise, são o PLP 19/2019 e PLP 112/2019. Mas, o que muda, caso seja sancionado na íntegra, o(s) projeto(s) de lei(s) complementar(es)? O que dispõem os ditos dos principais projetos de lei acerca do tema? Quais as diferenças entre eles? É o que veremos adiante.
O QUE MUDA? QUAIS AS NOVIDADES TRAZIDAS PELO RECÉM-APROVADO PROJETO DE LEI (PLP19/2019) E SEUS FUNDAMENTOS
Dentre os destaques, utilizamo-nos dos noticiados pelo próprio Banco Central, o qual enaltece que “a lei aprovada possui elementos importantes”, quais sejam:
- define a estabilidade de preços como objetivo fundamental do BACEN. Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, a instituição também terá por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego;
- determina mandatos fixos e não coincidentes de 4 anos para os diretores e para o presidente. Esses mandatos se sobrepõem apenas parcialmente ao mandato presidencial;
- estabelece que a exoneração de diretores e presidente da instituição só se dará em casos justificados, e com aprovação, por maioria absoluta, do Senado Federal;
- mantém os poderes legítimos do corpo político para sabatinar os diretores e o presidente e definir as metas mais específicas para a política monetária;
- define o BACEN como autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério; e
- garante a transparência e a prestação de contas, já que o presidente do BACEN deverá apresentar, no Senado Federal, em arguição pública, no primeiro e no segundo semestres de cada ano, relatório de inflação e relatório de estabilidade financeira, explicando as decisões tomadas no semestre anterior.
A nosso ver, ao criar tais critérios e formas de ocupação dos cargos de presidente e diretores do Banco Central do Brasil, cria também a vinculação legal de forma objetiva e fundamental, como se observa no artigo 1º da PLP em exame:
Art. 1º O Banco Central do Brasil tem por objetivo fundamental assegurar a estabilidade de preços.
Parágrafo único. Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego. (ênfase nossa).
Isso significa dizer que, caso não sejam cumpridos o objetivo fundamental, que é assegurar a estabilidade de preços, e ainda, seus objetivos, diga-se, secundários, poder-se-ia infringir o princípio da legalidade que, em apertadíssima síntese, vincula o agente público a executar o que está na lei.
Conforme extraímos, ainda, das lições do mestre Hely Lopes Meirelles:
a legalidade, como princípio de administração, significa que o administrador público está, em toda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso. (2004, p. 87)
Ao mesmo tempo que a autonomia é conferida ao órgão, em seu artigo 11, o projeto de lei, caso seja sancionado sem vetos pelo Presidente da República, cria novas responsabilidades. Fato é que, apesar da autonomia conferida ao órgão, maior do que a presidência, é a instituição Banco Central e, por isso, há a obrigatoriedade de relatórios anuais de prestação de contas, conforme o artigo mencionado do PLP 19/2019 que, atualmente, aguarda sanção do chefe do executivo.
RAZÕES E FUNDAMENTOS FAVORÁVEIS À AUTONOMIA
Dentre as inspirações para essa autonomia estão algumas teorias do vencedor do Prêmio Nobel de Economia, de 1976, Milton Friedman. Friedman foi um economista e estatístico norte-americano que se destacou pelas suas teorias em defesa do livre mercado.
Segundo o site Mais Retorno (2019), especializado em finanças, Friedman passou a ser mais conhecido a partir de 1957, quando elaborou a Teoria da Função de Consumo. De acordo com essa teoria, as decisões individuais sobre consumo e poupança amparam-se mais em mudanças permanentes na renda do que em qualquer incremento momentâneo na riqueza.
Dentre suas principais contribuições na economia, está aquela em que ele refutou o keynesianismo (John Maynard Keynes), modelo macroeconômico que defendia os gastos do Estado (política fiscal) como contraponto às limitações do modelo de livre mercado.
Diante dos estudos produzidos por ele, destaca-se o seu foco na política monetária e seus efeitos sobre os níveis de preços. Suas constatações sustentam, como premissa básica, o crescimento sem sobressaltos na oferta da moeda.
Em outra análise, foram seus estudos que trouxeram, na segunda metade do século XX, os conceitos clássicos de Adam Smith e suas ideias de defesa na capacidade própria dos mercados em alcançar eficiência e equilíbrio econômico, enaltecendo os conceitos e concepções liberais ao que pertine à economia.
Em síntese, os principais motivos que justificam a necessidade de autonomia ao Banco Central são os de assegurar a estabilidade de preços, conter a inflação e se desvencilhar de influências políticas.
COMO FUNCIONAM OS OUTROS BANCOS CENTRAIS AUTÔNOMOS NO MUNDO
A autonomia dos Bancos Centrais foi popularizada em 1989. Nesse ano, diversos deles passaram a ser autônomos e/ou independentes e, nisso, deve-se esclarecer que há diversos economistas que defendem que uma vez sendo outorgada aos bancos centrais maior autonomia, o resultado é maior transparência e redução dos índices de inflação.
Dentre os outros países que têm bancos centrais independentes, podemos citar, além dos Estados Unidos da América, da Zona do Euro, o Reino Unido, Japão, Rússia, Canadá, México e na América Latina, Chile e a Argentina, os quais aprovaram a autonomia antes de 2000.
Os economistas Barry Eichengreen e Nergiz Dincer avaliaram mais de 100 bancos centrais em todo o mundo, entre 1998 e 2010. A conclusão deste estudo corrobora a necessidade de autonomia no alcance de alguns objetivos tidos como essenciais. Em sua conclusão, apontaram que existe uma tendência de aumento da transparência e da independência, diretamente ligada à redução dos índices de inflação (EICHENGREEN, 2017).
ARGUMENTOS CONTRA A AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL
O principal argumento em oposição à autonomia do Banco Central, vencido durante as votações do PLP 19/2019, tanto na Câmara dos Deputados quando no Senado Federal, é o de que a subordinação do Banco Central é questão de política de governo e não de estado.
Desta feita, se a política monetária, as metas de fomentação de empregos, a estabilidade e eficiência do sistema financeiro, enfim, todos os elementos que ditam as diretrizes da economia nacional, são políticas de governo, logo, deve-se manter o Banco Central sob o domínio do chefe do executivo (Presidente da República) e a descentralização deste poder, dando-lhe autonomia, seria extremamente prejudicial.
A AUTONOMIA NÃO É ABSOLUTA, HÁ LIMITES
Neste item serão apresentadas algumas das disposições para demonstrar que a autonomia recém-aprovada do BACEN tem limites impostos para um funcionamento equilibrado. O primeiro deles é a segurança jurídica oferecida pelo princípio da legalidade.
Em que pese o tema ter sido pouquíssimo enfrentado pelo Judiciário, notamos, por analogia, que o princípio da legalidade é o requisito utilizado para se ter segurança jurídica.
Como outrora decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), os parâmetros de correção monetária ou de juros não podem ficar na dependência unilateral do Governo, que o faz no exercício do poder imperativo através de determinação ao Banco Central. Portanto, no precedente nomeado abaixo, ainda que verse sobre caso específico de incidência de juros e correção monetária sobre tributo, por analogia, traz o princípio da legalidade e a necessidade de lei para versar sobre a correção monetária e juros (REsp 215.881/PR).
Outra novidade limitadora trazida pelo PLP 19/2019 é que o presidente do Banco Central e seus diretores poderão ser exonerados nas hipóteses descritas no artigo 5º, que são:
I. a pedido;
II. no caso de enfermidade que incapacite o titular para o exercício do cargo;
III. quando for condenado em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado pela prática de improbidade administrativa ou crime cuja pena acarrete, ainda que temporariamente, a proibição de acesso a cargos públicos;
IV. quando apresentar comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do BACEN.
Os ocupantes dos cargos de presidente e diretor não poderão exercer qualquer outra atividade profissional, exceto a de professor. Não poderão manter participação acionária direta ou indireta em instituições financeiras que estejam sob supervisão ou fiscalização do BC.
O presidente ou diretor do BACEN não poderá ocupar cargo no setor financeiro antes de 6 meses de sua saída do órgão. O objetivo dessa quarentena é evitar que o ex-presidente beneficie seu novo empregador com informações às quais teve acesso no BACEN.
PONTOS MAIS IMORTANTES EM RESUMO
Segue-se um resumo dos pontos mais importantes do recém-aprovado PLP19/2019 com alguns destaques:
Como será dada a autonomia | O BACEN torna-se uma autarquia de natureza especial, ausente a vinculação a Ministério. Com independência técnica, operacional, administrativa e financeira (art. 6º). |
Objetivo fundamental | Assegurar a estabilidade de preços (art. 1º). |
As Metas de política monetária | Serão estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (art. 2º) |
Prestação de Contas | O Presidente do BACEN deverá apresentar no 1º e 2º semestres de cada ano, um relatório de inflação e outro de estabilidade financeira (art. 11). |
Composição | 1 Presidente e 8 Diretores |
Alteração do status do cargo | Perde o status de Ministro e ganha estabilidade em seus mandatos (art. 6º). |
Critérios objetivos para os cargos | Brasileiros idôneos;
De reputação ilibada e; De notória capacidade em assuntos econômico-financeiros ou; Comprovados conhecimentos que os qualifiquem para a função Art. 3º). |
Indicação e aprovação | Indicação e nomeação continuam sob a responsabilidade do Presidente da República, porém, após a aprovação do Senado Federal (art. 4º). |
Mandatos | Duração de 4 anos.
Presidente – início em 1º de Janeiro do 3º ano do mandato do Presidente da República. dois diretores terão mandatos com início em março do primeiro ano de governo; dois diretores terão mandatos com início em janeiro do segundo ano governo; dois diretores terão mandatos com início em janeiro do terceiro ano de governo; dois diretores terão mandatos com início em janeiro do quarto ano de governo. |
Recondução ao Cargo | Poderá ser feita apenas por uma vez por decisão do Presidente da República. |
CONCLUSÃO
Concluímos que o Projeto de Lei aprovado, que seguiu para sanção presidencial, tem em seus fundamentos o objetivo de assegurar a estabilidade de preços, como sendo objetivo principal da política monetária com um fim em comum, a estabilidade da moeda.
A meta de inflação baixa e o controle do sistema de preços e, repita-se, toda a política monetária, conforme o texto aprovado, são matérias inerentes à política de estado e não de governo.
Significa dizer que a economia, sua estabilidade e seus fundamentos são maiores do que os governantes ao passo que impõe a aprovação do Senado na escolha da diretoria de cúpula do Banco Central.
Dito isto, não somente os objetivos perseguidos, mas destaca-se também que a autonomia é meio para que os fins sejam alcançados.
Diante do movimento econômico liberal que tomou conta das casas legislativas, entendeu-se e isso fica bem claro neste projeto aprovado, que a descentralização dos poderes do chefe do executivo e a participação com maior representatividade popular, é a força que move tal movimento.