Por Lucimer Coelho – OAB/GO nº 33.001
Advogada e sócia da Jacó Coelho Advogados. Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social – Argentina. Especialização em Direito Público (Direito Constitucional e Direito Administrativo) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC); MBA Gestão de Seguros e Resseguro (Executivo) pela Escola Nacional de Seguros (FUNENSEG); MBA Gestão Jurídica de Seguro e Resseguro pela FUNENSEG.
A transição para veículos elétricos e autônomos impõe novas e complexas exigências ao Direito Securitário, especialmente no campo da responsabilidade civil. À medida que tecnologias embarcadas substituem, progressivamente, a ação humana na condução de veículos, surgem complexas indagações sobre a alocação de responsabilidades em caso de sinistro. A tradicional imputabilidade do condutor, prevista no art. 186 do Código Civil, encontra limitações quando a causa do dano decorre de falhas sistêmicas, de algoritmos ou de defeitos em componentes eletrônicos. Essa realidade exige um novo olhar do setor securitário sobre os contratos de seguro auto e os modelos de regresso.
No contexto brasileiro, a responsabilidade civil está estruturada sobre a culpa, nos termos do art. 927 do Código Civil. Entretanto, nos casos em que há defeito no produto, aplica-se a responsabilidade objetiva do fornecedor, conforme dispõe o art. 12 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). Assim, a depender da origem do evento danoso, a responsabilidade poderá ser atribuída ao condutor, ao fabricante do software de direção autônoma, ao montador do veículo ou à empresa que desenvolveu a infraestrutura de comunicação entre veículos e sistemas de trânsito. O princípio da reparabilidade integral e a teoria do risco do empreendimento fortalecem essa conclusão.
Ainda que a regulação brasileira sobre veículos autônomos e elétricos esteja em fase embrionária, o avanço tecnológico já impõe uma reconfiguração do raciocínio jurídico em matéria de responsabilidade civil. A substituição da condução humana por sistemas automatizados e algoritmos de decisão levanta a necessidade de rever a centralidade do condutor como polo passivo exclusivo nos eventos de sinistro. Com a complexificação da cadeia técnica — que envolve montadoras, desenvolvedores de software, integradores de sensores e até fornecedores de infraestrutura urbana inteligente —, o enfoque passa a recair sobre a responsabilização dos entes que compõem o ecossistema de automação. Essa nova configuração exige do mercado segurador um reexame dos limites contratuais da cobertura, das hipóteses de exclusão e, especialmente, das possibilidades de regresso em face de terceiros tecnicamente responsáveis pelo defeito ou falha que deu causa ao dano.
A regulamentação de padrões técnicos para veículos automatizados e elétricos, ainda em construção no Brasil, também influenciará a forma como os sinistros serão interpretados e apurados. A atuação da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) e do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) na definição de parâmetros regulatórios e de segurança será determinante para o equilíbrio da equação atuarial. Para as seguradoras, torna-se estratégico monitorar os avanços legislativos e técnicos, além de adaptar os produtos existentes à nova realidade de risco.
Não menos relevante é a questão da prova pericial nos casos de colisão ou danos envolvendo tecnologia embarcada. A apuração da responsabilidade demandará conhecimento técnico especializado e ferramentas capazes de identificar se o sinistro decorreu de falha humana, erro de software, defeito de fabricação ou mesmo de interferência externa (como ataques cibernéticos). Este é um ponto sensível também para o Judiciário, que precisará estabelecer parâmetros para produção e valoração dessas provas.
Do ponto de vista contratual, o setor deve avaliar a inclusão de cláusulas que delimitam, com maior precisão, os riscos cobertos e as situações de exclusão, com observância aos princípios do dever de informação e da transparência (arts. 46 e 47 do CDC), e da boa-fé objetiva (art. 422 do CC). A segurança jurídica das relações securitárias dependerá do alinhamento entre os avanços tecnológicos e a capacidade do setor em mitigar riscos, redigir contratos coerentes com a realidade tecnológica e manter reservas técnicas compatíveis com os novos cenários.
Nesse novo paradigma, é fundamental que as seguradoras adotem uma postura proativa, antecipando-se aos riscos, incorporando tecnologias de monitoramento e firmando parcerias com fornecedores de dados veiculares. A transformação do mercado automobilístico é também um convite à inovação jurídica e à revisão de modelos tradicionais de responsabilização, exigindo do setor segurador um reposicionamento estratégico diante da mobilidade do futuro.