Por Claudinéia Santos Pereira OAB-GO 22.376
Advogada e sócia da Jacó Coelho Advogados. Tem MBA em Gestão Jurídica de Seguro e Resseguro pela FUNENSEG. É pós-graduada em Direito Tributário e Processo Tributário pela Faculdade Atame de Goiânia-GO e Mestranda em Direito do Agronegócio e Desenvolvimento pela UniRV.
O seguro de vida, historicamente associado à cobertura por morte, vem passando por uma importante reconfiguração no mercado brasileiro. A lógica tradicional de um contrato voltado exclusivamente à indenização após o falecimento tem dado lugar a um modelo mais funcional, adaptado às novas demandas da sociedade: o uso em vida. Trata-se de uma mudança de paradigma com implicações jurídicas, comerciais e assistenciais relevantes, especialmente para seguradoras que buscam agregar valor à experiência do segurado e ampliar a penetração desse tipo de produto no país.
Com a incorporação de assistências voltadas ao cotidiano como telemedicina, suporte emocional, orientação nutricional, assistência funeral em vida, serviços domiciliares e até programas de saúde financeira, o seguro de vida adquire um caráter híbrido: ainda pautado pelo risco, mas com elementos cada vez mais presentes de mutualismo ativo. É uma tendência que ressignifica o papel da proteção securitária, afastando-se da ideia de um benefício exclusivamente voltado a terceiros e reforçando seu valor como ferramenta de bem-estar, prevenção e amparo ao próprio segurado.
Do ponto de vista jurídico, é essencial atentar-se à natureza dessas assistências e à forma como estão estruturadas contratualmente. O seguro de pessoas é regulado pelo Código Civil (artigos 789 a 802), pela Resolução CNSP nº 117/2004 e pelas normas da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), especialmente a Circular nº 667/2022, que define e atualiza as regras dos seguros de pessoas. O contrato deve delimitar com precisão as coberturas principais e acessórias, além de garantir transparência na diferenciação entre garantia securitária e prestação de serviço. A falta de clareza pode resultar em questionamentos jurídicos quanto à caracterização da obrigação e à eventual responsabilidade solidária por falhas na execução dos serviços.
Do lado empresarial, a expansão do uso em vida representa uma oportunidade estratégica. Com uma população envelhecendo e cada vez mais preocupada com qualidade de vida, os produtos que oferecem utilidade tangível e imediata se destacam. Além disso, o uso recorrente das assistências fortalece o vínculo do segurado com a seguradora, reduzindo churn e aumentando o limite do valor do contrato. Essa dinâmica aproxima o seguro de vida do conceito de serviço contínuo, com potencial de integração a programas de benefícios corporativos, planos de saúde suplementar e estratégias de bem-estar nas empresas.
Contudo, o avanço desse modelo também impõe desafios: é preciso equilibrar a sustentabilidade atuarial com a oferta de benefícios de uso frequente. A modelagem de produtos deve considerar com rigor os custos operacionais das assistências e a adequação de rede credenciada, além da capacitação do atendimento para evitar o descumprimento de obrigações contratuais. Em paralelo, o marco regulatório precisa acompanhar esse movimento com segurança jurídica, estimulando a inovação sem abrir mão da proteção ao consumidor.
Em um país onde menos de 20% da população economicamente ativa possui seguro de vida, segundo a Federação Nacional de Previdência Privada e Vida, ampliar o escopo de cobertura e incluir benefícios percebidos em vida pode ser o caminho para tornar o produto mais atrativo, acessível e funcional. Para isso, é fundamental que seguradoras, reguladores e operadores do direito estejam alinhados quanto aos limites, obrigações e oportunidades dessa nova configuração.
O seguro de vida com assistências voltadas ao uso em vida não descaracteriza a essência da proteção securitária, mas a amplia, incorporando funcionalidades que respondem às necessidades atuais dos segurados e das empresas. Ao aliar cobertura financeira à entrega de valor contínuo, esse modelo reforça o papel do seguro como instrumento de amparo, planejamento e previsibilidade.