Alexandre Almeida da Silva
OAB/GO 65.898 / OAB/SP 463.082
Formado em Direito pela UFRJ com pós-graduação em Direito Privado pela PUC-Rio
Sócio da Jacó Coelho Advogados
A Apple deixou de fornecer adaptador de tomada e fone de ouvido nas caixas de seus aparelhos celulares, e, por isso, sofreu uma Ação Civil Pública (ACP) e foi condenada em primeira instância[1] a indenizar danos sociais fixados em R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais). A condenação também integra obrigação de fazer para que os adaptadores de energia sejam concedidos aos compradores, prestação devida a partir do trânsito em julgado[2].
A alegação principal é de que teria havido venda casada[3] em razão de se tratar o adaptador de tomada de um item essencial para o funcionamento do produto, mas a Apple insiste que ele não seria indispensável porque fornece o adaptador de energia USB-C de 20W; e sustenta que o ato contribuirá para o alcance de uma denominada “iniciativa verde” para reduzir o impacto ao meio ambiente relativo à produção industrial do item em questão.
A pretensão da Associação que ajuizou a demanda foi acolhida pelo juiz, mas apesar do sucesso inicial a decisão é passível de recursos e, por certo, há espaço para questionar se de fato a Apple incorre na prática de venda casada e se seriam ocorrentes os pretendidos danos sociais.
A começar pela venda casada, prescreve o artigo 39, I da Lei 8.078/90 que é vedado “condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço”. Também a Lei 12.529/2011 trata da questão dispondo que configura infração à ordem econômica, segundo o artigo 36, XVIII, “subordinar a venda de um bem à aquisição de outro”.
Sob a ótica da responsabilidade administrativa, a partir da qual a empresa poderia sofrer sanções (especialmente multas), a primeira conduta se analisa pela perspectiva do direito consumidor e, a segunda, pela lente do direito econômico. A ACP se dá no campo consumerista, da responsabilidade civil, no âmbito do ressarcimento dos danos materiais impostos aos consumidores prejudicados e da reparação dos danos extrapatrimoniais deste mesmo público, além das obrigações de fazer.
A fabricante parte da premissa de que o adaptador de tomada é um item abundante, por isso estaria disponível aos consumidores, e, ainda, o produto é entregue com cabo que serve para permitir a recarga da bateria em dispositivos que tenham porta de entrada USB.
É possível verificar no site da própria fabricante que os adaptadores de tomada para Iphone variam entre R$ 191,00 (cento e noventa e um reais), o mais barato, e R$ 559,00 (quinhentos e cinquenta e nove reais), o mais caro[4]. O item, portanto, não é vendido a preço módico, muito pelo contrário.
Neste contexto, salvo melhor juízo, a conduta da fabricante estaria mais para exigência de vantagem manifestamente excessiva (art. 39, V c/c art. 51, §1º, III) do que para venda casada, isso porque quem resolve comprar o adaptador pretendendo ter o item original terá que se sujeitar a pagar o preço estabelecido pela Apple. A essencialidade do item é realmente discutível, uma vez que muitos o possuem, por vezes diversos, e o carregamento do aparelho pode ser realizado em equipamentos ou instalações que têm a entrada USB.
Ademais, a circunstância fática não é aquela clássica de venda casada na qual os produtos são vendidos necessariamente juntos quando um não dependeria do outro, onerando desmedidamente o negócio para o consumidor comprador. Ao contrário, neste caso o consumidor não precisaria adquirir os dois produtos, a não ser que prefira ou precise, mas também pode optar por outro fornecedor. Por tudo isso não parece se estar diante de venda casada, apesar de ser esta uma hipótese discutível, mas por via muito indireta.
Em toda conjuntura o ponto que mais chama a atenção está na imposição de pagamento de indenização por danos sociais. Neste quesito a pergunta é se ele existe, sobre qual seria o impacto do dano e o bem jurídico tutelado a justificar uma indenização de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais)?
O dano social foi tratado por Antônio Junqueira de Azevedo que, de maneira objetiva, o definiu como aquele que “atinge a toda a sociedade, num rebaixamento imediato do nível de vida da população”. O saudoso professor da Universidade de São Paulo ainda afirmou que seu reconhecimento objetiva a “reposição à sociedade, visa restaurar o nível social de tranquilidade diminuída pelo ato ilícito[5]”. Infere-se assim que o dano social detém uma gravidade inquestionável sobre um patrimônio que é capaz de afetar o bem-estar de comunidade relevante.
Convém ainda lembrar que em 2012 a V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ aprovou o Enunciado 456[6] que fixou a convergência da previsão legal do art. 944 do Código Civil com o reconhecimento dos danos sociais.
Logo, há consenso quanto a viabilidade da pretensão, mas observados os critérios de constituição admitidos pela doutrina e jurisprudência como prejuízo patrimonial ou moral à coletividade, capaz de provocar rebaixamento moral ou perda da qualidade de vida da comunidade; com conduta dolosa ou culposa do agente; e, por fim, com pretensão de reparação sustentada por legitimados a propor ações coletivas.
Neste contexto, não há dúvida que a conduta provoca prejuízos (materiais) a uma coletividade de consumidores, a danosa decisão empresarial foi intencional e a ação foi proposta por Associação legitimada, de modo que resta avaliar se a lesão é capaz de rebaixar a moral coletiva ou impingir-lhe redução da qualidade de vida e, confirmada a hipótese, resta saber se o valor fixado como indenização é compatível com a funcionalidade do instituto.
Não se pode desconsiderar o argumento que remete à meta de redução de impacto ambiental da produção industrial (todos deveriam ser sensíveis a necessidade da produção eficiente que reduza o impacto ao meio ambiente), por outro lado a conduta desonera a fabricante de incluir o item na caixa, logo reduz o custo de produção e, com isso, impõe ao consumidor a aquisição onerosa, daí a abusividade. Desta forma quem arca com a eficiência prolatada é o consumidor, e o fabricante ainda lucra, pois não reduz o preço do produto.
Nada obstante, o dano social não se configura por qualquer abusividade, o ato deve ser capaz de constranger a dignidade coletiva, rebaixando o nível e a qualidade de vida comunitária, e esse definitivamente não é o caso, pois não se pode dizer que a falta de um item útil, mas tão básico, seja capaz de gerar tamanha perturbação.
Por fim, ao se falar de dano social se está a tratar de uma coletividade indefinida ou de grande contingente indefinidos de prejudicados. Aqui eles podem ser selecionados e são aqueles que adquiriram o produto e, no ato ou após, compraram separadamente o adaptador de tomada. Logo, esta coletividade de consumidores poderia estar habilitada ao reembolso do dano emergente, bem como poderia ter danos extrapatrimoniais liquidados, hipótese, portanto, de danos morais coletivos, o que, por si só, deveria reduzir drasticamente o montante fixado na sentença, até porque a falta do item em questão não tem o potencial ofensivo suficiente para se falar em rebaixamento do nível de vida para caracterizar danos sociais tal como definiu o jurista que inaugurou o reconhecimento deste instituto.
[1] Ref. Processo nº 1078527-71.2022.8.26.0100, da 18ª Vara Cível da Comarca de São Paulo/SP.
[2] Deve ainda ser entregue adaptador de energia aos consumidores que adquiriram os produtos após 13/10/2020.
[3] A ocorrência de venda casada também é o entendimento da Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON) no processo administrativo nº 08012.003482/2021-65.
[4] Consulta realizada em outubro/22.
[5] JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva. Acesso em: 18 out. 2022, 2010, págs. 380/381.
[6] Enunciado 456 – Art. 944: A expressão “dano” no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas.