Por Claudinéia Santos Pereira OAB-GO 22.376
Advogada sócia diretora da Jacó Coelho Advogados. Tem MBA em Gestão Jurídica de Seguro e Resseguro pela FUNENSEG. É pós-graduada em Direito Tributário e Processo Tributário pela Faculdade Atame de Goiânia-GO e Mestranda em Direito do Agronegócio e Desenvolvimento pela UniRV.
À medida que o setor de seguros se adapta às exigências de um mercado cada vez mais orientado por dados, inovação e experiência do usuário, surgem estratégias que transcendem o modelo tradicional de proteção contratual. A gamificação, ao aplicar mecânicas típicas de jogos em contextos securitários, transforma a interação entre seguradoras e segurados, promovendo o engajamento ativo dos clientes e incentivando condutas que reduzem riscos. Mais do que um recurso lúdico, trata-se de uma ferramenta de gestão comportamental com potencial de impactar positivamente a sinistralidade, a fidelização e a educação securitária — elementos que, juntos, fortalecem a sustentabilidade técnica das carteiras e ampliam o alcance social do seguro.
Na seara securitária, a gamificação representa uma evolução do modelo relacional entre segurado e seguradora, passando de uma lógica essencialmente transacional para uma abordagem interativa e personalizada. Ao atribuir pontos, recompensas ou vantagens aos segurados que demonstram condutas de baixo risco, as seguradoras não apenas incentivam comportamentos virtuosos, mas reduzem substancialmente a frequência e a gravidade dos sinistros, gerando efeitos positivos sobre a sinistralidade e a precificação atuarial. Essa dinâmica é especialmente relevante em produtos massificados – como seguro automotivo e seguro de vida – cuja performance econômica depende da eficiência estatística de grandes carteiras.
Do ponto de vista jurídico, a adoção de mecanismos gamificados no setor de seguros não se dá à margem da regulação. O novo Marco Legal dos Seguros, instituído pela Lei nº 15.040/2024, consagra os princípios da boa-fé, da transparência e da função social do contrato de seguro, que são diretamente impactados pela inserção de tecnologias gamificadas nas etapas de contratação e execução contratual. É imprescindível que a implementação de sistemas de pontuação, bonificação ou ranqueamento respeite os direitos básicos dos segurados, especialmente no que se refere ao dever de informação (arts. 13 e 14), ao tratamento equitativo e à ausência de cláusulas ambíguas que possam subtrair garantias ou gerar discriminação injustificada entre clientes da mesma carteira.
A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) também impõe limites importantes à coleta e ao tratamento de informações pessoais utilizados na gamificação. Como muitos programas envolvem análise de dados sensíveis – como localização, comportamento de condução ou histórico de saúde – é essencial que as seguradoras garantem a base legal adequada para o tratamento (consentimento, execução de contrato e legítimo interesse), assegurem a transparência na finalidade do uso dos dados e implementem medidas de segurança cibernética compatíveis com os riscos envolvidos.
Além das obrigações regulatórias, as seguradoras devem estar atentas aos riscos concorrenciais e consumeristas. A estrutura de premiação e os critérios de avaliação utilizados em ambientes gamificados não podem resultar em exclusão indireta de segurados ou em indução ao erro, sob pena de configurar prática abusiva nos termos do Código de Defesa do Consumidor. Há, portanto, um desafio jurídico relevante na calibragem desses sistemas, de modo a compatibilizar inovação comercial com estabilidade contratual e previsibilidade jurídica.
Por outro lado, a gamificação pode ser vista como um instrumento de convergência entre os interesses das partes contratantes. Ao transformar a experiência do seguro em algo mais dinâmico, compreensível e recompensador, essa estratégia pode servir como ferramenta de educação securitária, especialmente junto a públicos com menor familiaridade com os produtos tradicionais. Isso reforça o papel da gamificação como vetor de inclusão financeira e de expansão do mercado segurador, em linha com os objetivos da Política Nacional de Acesso ao Seguro, estruturada pela Susep.
Portanto, embora a gamificação no setor de seguros represente uma oportunidade estratégica de diferenciação e fidelização do segurado, sua implementação exige cautela, conhecimento jurídico especializado e governança robusta. A tendência de personalização da jornada do cliente, com estímulos comportamentais mediados por tecnologia, insere-se em um contexto regulatório que valoriza a equidade, a proteção de dados e a transparência como fundamentos do contrato de seguro. Nesse cenário, a assessoria jurídica preventiva torna-se indispensável para mitigar riscos, preservar a reputação institucional e assegurar a conformidade das práticas empresariais com os parâmetros legais e regulatórios vigentes.