Alexandre Almeida da Silva
OAB/GO 65.898 / OAB/SP 463.082
Formado em Direito pela UFRJ com pós-graduação em Direito Privado pela PUC-Rio, mestrando em Direito Público na FGV/SP
Sócio da Jacó Coelho Advogados
A regulação de novas tecnologias é um desafio que na atualidade vem sendo colocado quase que concomitantemente para todas as nações. Se houve um tempo em que um novo produto ou serviço demorava anos para ser incorporado pelos países periféricos, hoje vivemos em um mundo hiperconectado em que as mudanças ocorrem praticamente ao mesmo tempo para todos.
Apesar disso, ainda existe a tendência no Brasil de se esperar para seguir o caminho de soluções aplicadas na Europa e nos Estados Unidos (o que não está errado), mas esse diferimento, atualmente, implica em maior desconforto (gerado pela espera de um remédio jurídico adequado a ser trasladado) ou na tomada de soluções heterodoxas e provisórias, premidas pela pressão ou por intervenções processuais de grupos de interesse.
Ilustra bem a questão a deliberação da Anatel que, em 2020, considerou streaming lineares como Serviço de Valor Agregado (SVA). A decisão resolveu a questão do momento, afastando a total insegurança jurídica, mas ao mesmo tempo, sem dar uma solução satisfatória, aprofundou o desequilíbrio econômico e concorrencial no mercado, em prejuízo das empresas reguladas[1].
No caso mencionado, que tratava do enquadramento regulatório da televisão linear por assinatura na internet em que o conteúdo é distribuído ao vivo e em modelo de grade de programação, a Anatel resolveu que tal não se tratava de uma utilidade equivalente à TV por assinatura, regida pelo Serviço de Acesso Condicionado (SeAC); foi então que o enquadrou como Serviço de Valor Adicionado (SVA), que não é serviço de telecomunicações, e que, por isso, não está submetido à regulação da Agência.
A decisão foi justificada, principalmente, pela competência dada à Anatel para interpretar a legislação de telecomunicações (art. 19, XVI da Lei 9.472/1997), pela aplicação da abordagem consequencialista (art. 20 da LINDB), para evitar o abuso do poder regulatório (art. 4º da Lei 13.874/2019), tudo com a finalidade de incentivar a inovação digital e o desenvolvimento de novas tecnologias.
Enfim, em que pesem os argumentos que dirigiram a decisão, o fato é que o resultado útil do serviço entregue pela aplicação era o mesmo de uma empresa de TV por assinatura, qual seja, a disseminação de grade de programação ao vivo mediante pagamento, mas o tratamento concedido pelo regulador naquela decisão foi diferente para a aplicação, apenas por ser ela ancorada na internet.
Este é o contexto das empresas chamadas Over-The-Top[2] (OTTs), que, como se vê, ainda contam com a “imunidade” regulatória em comparação às prestadoras que passaram a fazer concorrência. O Whatsapp concorre com serviços de telecomunicações em voz, vídeo e mensagens de texto, bem como o Youtube e a Netflix concorrem com os serviços de TV por assinatura. Entretanto, essas Big Techs ainda não estão submetidas aos órgãos reguladores.
Muito embora essa disparidade hoje em dia seja explícita, isso não altera o consenso quanto a necessidade de se ter um tratamento diferenciado para as empresas de pequeno porte e, especialmente, para as empresas disruptivas da nova economia, como as OTTs, o que neste campo pode ser resolvido por mecanismos como o sandbox regulatório e pela regulação assimétrica, até que se possa equiparar o regime de concorrência e tratamento com os demais agentes econômicos.
Logo, de fato é preciso criar no Brasil um ambiente propício à inovação, com pesquisa e desenvolvimento de fórmulas novas, que rompam e superem tecnologias, processos e desenhos de soluções até então empregados. No entanto, problema prático se impõe quando a empresa disruptiva que não pode ser imediatamente enquadrada no contexto regulatório, depois de se converter em um serviço maduro e altamente rentável, concorrente de empresas do mercado regulado, continua no limbo regulatório e ali pretenda ficar.
Para dar contornos reais ao problema, as empresas sujeitas às resoluções do Serviço Móvel Pessoal (SMP) e do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) estão obrigadas a adotar metas de qualidade do serviço, precisam atender a níveis mínimos de atendimento aos usuários e, no caso específico das TVs por assinatura, a observar regras sobre classificação etária e conteúdo nacional. Caso não atendam às prescrições estão sujeitas a sofrer pesadas penalidades, que vão da aplicação de multa até a caducidade. Ora, em relação as Big Techs nada disso se aplica.
No Brasil, para ficar no caso do streaming, somente no mês de dezembro de 2022 a Agência Nacional de Cinema (ANCINE) criou um grupo de trabalho para procurar estabelecer regras para aplicação sobre as empresas de Video on Demand[3], questão que até o momento, como já ficou claro, não conta com tratamento legal.
Até aqui, para escapar do alcance do regulador, as OTTs sustentam o argumento da decisão tomada pela Anatel, sob o qual fornecem Serviço de Valor Agregado (SVA) que, por sua vez, não é classificado como serviço de telecomunicação. Abre-se parêntese para lembrar que, no princípio, SVAs eram aplicações triviais, como informações de horóscopo ou de notícias, para as quais o assinante pagava um preço módico para receber diariamente em seu celular, mas aos poucos parece que tudo que é novo virou SVA; e, diga-se, o enquadramento importa não somente na liberação de regras e obrigações, mas na incidência de menos custos, o que se aplica, inclusive, a menor carga tributária[4].
Por outro lado, as empresas da economia formal arrecadam bilhões em impostos e geram milhares de empregos, enfrentam queda de receita e de assinantes, por verdadeira obsolescência provocada dos seus serviços (substituídos por aplicações OTTs com as quais concorrem) e no caso das empresas de telecomunicações, ainda têm que arcar com investimentos intensivos na implantação e na manutenção das redes[5] que, no fim do dia, são aproveitadas por empresas que atuam over-the-top, que operam do exterior, com quadros reduzidos em território nacional, capturando receitas de usuários antes vertidas para os serviços regulados e, ainda, tais empresas arrecadam menos impostos para o Estado brasileiro.
Mas, finalmente, a União Europeia realizará consulta pública, ainda no primeiro trimestre de 2023, sobre a necessidade de as Big Techs passarem a contribuir para o investimento em redes de telecomunicações[6]. Neste quadro, a ETNO (sigla para Associação Europeia de Operadores de Redes de Telecomunicações) apontou que Meta, Alphabet, Apple, Amazon, Microsoft e Netflix respondem por 56% do tráfego de redes fixas e móveis.
Assim, provavelmente, logo veremos uma solução para o problema do investimento em infraestrutura de telecomunicações que poderá ser copiada pelo Brasil, mas há outros problemas que clamam por regulação.
As redes sociais, de relacionamento, comunicação e vídeos on line ainda não encontraram soluções satisfatórias para a disseminação de desinformação e discursos de ódio, o que precisa ser urgentemente remediado.
E não se está a tratar de imposição de censura prévia ou de limites arbitrários à liberdade de expressão, mas da superação do conceito firmado pelo qual a aplicação de internet não tem responsabilidade pelo material que terceiros publicam nas suas plataformas.
A propósito, a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, que estabeleceu este entendimento, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal[7].
Por este turno, apesar da polêmica que envolve o tema, é preciso ponderar se a moderação de conteúdo deveria ser uma obrigação do provedor de aplicações de internet, independentemente de ordem judicial, e se o embaraço à propagação dos conteúdos falsos ou enganosos que envolvam direitos fundamentais e a exclusão dos conteúdos criminosos das redes deve ser medida imediata, bem como a desmonetização de todos eles, após avaliação, assim que denunciados. Tudo isso poderia ser obrigação, determinada por regras claras e equilibradas, elaboradas por órgão competente, e não resultado do arbítrio exclusivo de empresas privadas que atuam em nítido conflito de interesses, já que lucram com a viralização dos mesmos conteúdos enganosos, falsos ou ilícitos que deveriam retirar.
As Big Techs também precisam observar as regras aplicáveis a qualquer empresa no contexto concorrencial, pois o que se vê ainda hoje são aquisições de players entrantes pelos dominantes, como forma de barrar novas aplicações (killer acquisitions); acordos de exclusividade; dados de usuários sendo utilizados para dar vantagem competitiva em relação a outros concorrentes e alocação de preferência na ordem da lista de consultas para serviços da própria aplicação.
No caminho de uma evolução, já há movimentações para que a Anatel ganhe escopo mais abrangente e possa assumir a regulação de OTTs e SVAs, o que daria maior equilíbrio ao mercado. Além disso, muitas das questões aqui levantadas estão alcançadas pelo Projeto de Lei n° 2630 de 2020, em trâmite no Congresso Nacional – a ver o que se consolidará ao fim do processo legislativo.
Sobre a necessidade de melhoria no marco institucional e regulatório no Brasil a OCDE[8] recomenda que o Brasil siga a tendência internacional de criação de agência que encampe a comunicação e a radiodifusão, de modo que se tenha mais dinamismo no processo regulatório.
Enfim, o sonho libertário é a convivência em uma sociedade de total liberdade, sem regras, sem custos de transação e de responsabilidade reduzida, mas não é assim que funciona, “não há almoço grátis”, ou seja, ninguém pode supor receber benefícios sem encarar riscos e pagar custos e, por isso, não se pode esperar que as Big Techs vivam para sempre no Mundo Livre S.A. que só existe para elas.
[1] Vide: Análise nº 84/2020/VA no processo nº 53500.022476/2019-45 na Anatel e Acórdão Anatel nº 474/2020 no processo nº 53500.022573/2019-38.
[2] As empresas Over-the-top são aplicações tecnológicas que usam os serviços de internet, providos por empresas de telecomunicações, para distribuir conteúdo diretamente ao usuário final, mediante assinatura ou por outros meios indiretos de remuneração. Elas ocupam a maior parcela do tráfego da rede, mas não contribuem para a implantação e manutenção da infraestrutura ou remuneram os provedores de serviço.
[3]Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/ancelmo-gois/post/2022/12/cota-de-tela-taxacao-e-mais-ancine-decide-regular-servicos-de-video-por-demanda-como-netflix-e-afins.ghtml. Acesso em 23/12/2022.
[4] Serviços on line como SVA pagam somente ISS, enquanto aqueles serviços enquadrados como SeAC arcam com ICMS, Fust, Funttel e Condecine.
[5] https://conexis.org.br/telecom-investiu-r-91-bilhoes-no-3o-trimestre-de-2022/
[6]Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2022/09/epoca-negocios-ue-fara-consulta-sobre-big-techs-cobrirem-parte-dos-custos-da-rede-de-telecomunicacoes.html. Acesso em 21/12/2022.
[7]RE 1.037.396 e RE 1.057.258.
[8]“Em especial na área de radiodifusão (incluindo serviços de TV por assinatura), os papéis de regulamentação e formulação de políticas não estão claramente definidos. Múltiplas autoridades são encarregadas de desenvolver e implementar políticas e regulamentações (por exemplo, o MCTIC, Ancine e Anatel). Contrariando as boas práticas internacionais, não há uma distinção clara entre a formulação de política pública em geral e a emissão de regulação ex ante para lidar com falhas de mercado, promover a concorrência e defender os consumidores. Isso traz desafios consideráveis para a coerência das regulamentações e das políticas públicas”. E, ainda: “Para fortalecer o marco institucional e seguir as boas práticas internacionais, recomenda-se criar uma autoridade convergente independente, que seja responsável pelos mercados de comunicação e radiodifusão (incluindo TV por assinatura), e por monitorar a evolução dos serviços OTT, ao mesmo tempo que ela garante que o princípio da plena concorrência seja mantido, entre a regulamentação e a formulação de políticas”. Disponível em:
https://www.oecd-ilibrary.org/sites/a348dc77-pt/index.html?itemId=/content/component/a348dc77-pt. Acesso em 26/12/2022.